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  • Foto do escritorMiguel Dias

Coração de Pedra










Padrão de "um coração partido" na parede frontal do cemitério da Igreja de São Clemente, à direita do portão de entrada. Tirada perto de Rodel / Roghadal , Na h-Eileanan an Iar, Grã-Bretanha.


Interfaces entre floresta e cidade

Por muito tempo, a ação humana mais impactante no ambiente tem sido a mudança na cobertura dos solos (Newbold et al., 2015). Nesse processo, que envolve total supressão e queima da vegetação, a maioria das espécies vegetais, animais sésseis e com reduzida mobilidade (ex.: moluscos, artrópodes, anfíbios) é exterminada rapidamente; e as espécies altamente móveis (ex.: mamíferos, aves) que não foram incineradas fogem, abandonando recursos alimentares, abrigos e crias (Tilman et al., 2001; Turner, 2010).

Com a eliminação dos seus nichos efetivos, os animais - geralmente espécies de topo das cadeias alimentares - são obrigados a se dispersar em busca de refúgios na extensão de seu nicho fundamental, onde existem recursos e condições disponíveis à sobrevivência (Soberón; Nakamura, 2009). Entretanto, essas são áreas que já estão ocupadas com biodiversidade, levando-os aos impactos decorrentes da intensificação da competição, da predação e da superexploração de recursos (Burdon et al., 2019; Layman et al., 2007). Nesses refúgios, há aumento repentino de abundância e riqueza de espécies, maximizando o contato entre os organismos, elevando a probabilidade de transmissão e circulação de parasitos dentro da população, mas também de spillover entre espécies (Wilkinson et al., 2018). Em ambiente espacialmente limitado e “comprimido de indivíduos e espécies”, o processo de transmissão viral é facilitado e pode ocorrer por meio de interações diretas, notavelmente por predação e conflitos entre indivíduos, relações sexuais, comportamentais e sociais, e agrupamentos noturnos ou compartilhamento de abrigos. De forma indireta, poderá ocorrer pelo contato com urina e fezes contaminadas no compartilhamento de hábitat, pelo contato com saliva e muco durante o compartilhamento de recursos alimentares, ou pelo contato com sangue e restos de animais predados (Plowright et al., 2017; Jofrin et al., 2018).

Em um ambiente com alta sobreposição de hábitats, os recursos compartilhados entre espécies tornam-se superexplorados, aproximando os indivíduos e intensificando os riscos de spillover (Plowright et al., 2017). Nesse contexto, por exemplo, um tronco oco de árvore onde apenas uma família de pangolins abrigava-se torna-se um recurso escasso e altamente demandado, e passa a ser compartilhado também por famílias de morcegos e roedores. Na parte superior do oco penduram-se os morcegos, na linha do solo estão os pangolins, e a baixo deles, no subterrâneo, vivem os roedores. Nesse local os riscos de spillover de coronavírus são potencializados por uma sequência de contatos de cima abaixo, desde as fezes e urina dos morcegos caindo sobre os pangolins e, na sequência, de ambos sobre os roedores.

No modelo de uso dos solos em que há conversão integral das áreas naturais, criam-se zonas transicionais abruptas entre ambientes silvestres e matriz antrópica (plantações, áreas urbanas). Nessa transição forma-se um cinturão marginal contornando os fragmentos remanescentes, atuando como ecótono, mas sob influência do “efeito de borda”. Existe um produtivo debate sobre as repercussões ecológicas do “efeito de borda” e da tipologia de fragmentação nas paisagens, a variar com a configuração, composição e tamanho dos fragmentos (Fletcher et al., 2018; Fahrig et al., 2019). Mas, de uma forma geral, autores consideram que bordas transicionais largas resultam em maior probabilidade de spillover em paisagens altamente fragmentadas; portanto, maiores riscos de spillover de patógenos. Outros declaram que as bordas, por se comportarem como ecótonos, apresentam alta diversidade, pois são interfaces usadas por espécies oriundas de variados tipos de ambientes; portanto, nessa faixa haveria potencial também para uma maior diversidade viral, aumentando o risco de spillover. Muitos argumentam que nessas margens predominam as espécies generalistas, pois são capazes de explorar recursos variados em diferentes ambientes; portanto, teriam maior facilidade para circular entre diferentes hábitats, podendo atuar como vetor de vírus entre zonas silvestres e antrópicas, e vice-versa (Patz et al., 2004; Ries et al., 2004; Plowright et al., 2017; Wilkinson et al., 2018; Zohdy et al., 2019).

Para todos os efeitos, a conversão dos solos e a fragmentação dos hábitats geram zonas de maior contato, viabilizando novas interfaces entre os hábitats naturais e os ambientes antrópicos, promovendo interações interespecíficas, e aproximando reservatórios, vetores e hospedeiros, aumentando as possibilidades de transmissão e spillover viral (Ries et al., 2004; Patz et al., 2004; Wilkinson et al., 2018). Tem-se demonstrado que a fragmentação atua em conjunto com “efeitos coevolutivos”, aumentando a diversificação de vírus em ambientes silvestres, o que poderia favorecer a emergência de novas cepas (Zohdy et al., 2019). Existem evidências associando alterações de paisagens com emergência de doenças como malária, hantavirose, filariose, febres hemorrágicas, e muitas outras (Patz et al., 2004). Mas, no que concerne aos potenciais impactos do coronavírus à biodiversidade brasileira, a possibilidade de o humano atuar como vetor de coronavírus para outros animais gera um cenário epidemiológico assustador: um alerta para o futuro.


Print version ISSN 0103-4014On-line version ISSN 1806-9592

Estud. av. vol.34 no.99 São Paulo May/Aug. 2020 Epub July 10, 2020




















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